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Como a austeridade orçamental de hoje recorda os mal entendidos económicos da I Guerra Mundial
O enganoso abismo fiscal de 2012 dos EUA

por Michael Hudson [*]

Quando a I Guerra Mundial estalou em Agosto de 1914, economistas de ambos os lados previram que as hostilidades não poderiam perdurar mais do que cerca de seis meses. As guerras haviam-se tornado tão caras que o dinheiro dos governos rapidamente ficaria esgotado. Parecia que se a Alemanha não pudesse derrotar a França na Primavera, as potências aliadas e central teriam as suas poupanças esgotadas e atingiriam o que hoje é chamado de precipício orçamental (fiscal cliff) e seriam forçadas a negociar um acordo de paz. 

Mas a Grande Guerra arrastou-se durante quatro anos destrutivos. Os governos europeus fizeram o mesmo que os Estados Unidos após o estalar da Guerra Civil em 1861, quando o Tesouro imprimiu o papel-moeda, os chamados greenbacks . Eles pagavam por mais combate simplesmente com a impressão da sua própria moeda. Suas economias não cederam e não houve grande inflação. Isso aconteceu só após o término da guerra, devido à tentativa da Alemanha de pagar reparações em divisas estrangeiras. Foi o que provocou o afundamento da sua taxa de câmbio, elevando preços de importação e portanto preços internos. A culpa não foi da despesa do governo com a própria guerra (muito menos com programas sociais).

Mas a história é escrita pelos vitoriosos e a última geração assistiu à emergência dos bancos e do sector financeiro como os grandes vitoriosos. Mantendo os 99% da base em dívida, os 1% do topo estão agora a criar uma teoria económica enganosa para persuadir os eleitores a seguirem políticas que beneficiam o sector financeiro a expensas do trabalho, da indústria e do governo democrático tal como o conhecemos.

Os lobbystas da Wall Street atribuem a culpa do desemprego e da perda de competitividade industrial aos gastos do governo e aos défices orçamentais – especialmente com programas sociais – e à reivindicação do trabalho em participar da produtividade crescente da economia. O mito (talvez devêssemos chamá-lo teoria económica lixo) é que (1) governos não deveriam incidir em défices (pelo menos, não através da impressão da sua própria moeda), porque (2) a criação de moeda pública e impostos elevados (pelo menos sobre a riqueza) provoca ascensão de preços. Eles dizem que a cura para o mal-estar económico (o qual foi provocado por eles próprios) é menos despesa pública, bem como mais cortes fiscais para a riqueza, a qual eufemizam como "criadores de emprego". Reivindicando excedentes orçamentais, lobbystas dos bancos prometem que estes proporcionarão à economia bastante poder de compra para crescer. Então, quando isto acaba em crise, eles insistem em que a austeridade pode espremer suficiente rendimento para permitir que dívidas do sector privado sejam pagas.

A realidade é que quando bancos sobrecarregam a economia com dívida isto deixa menos para gastar com bens e serviços internos ao mesmo tempo que conduz para a alta os preços da habitação (e portanto o custo de vida) com criação imprudente de crédito em condições de empréstimo frouxas. Mas no topo desta deflação da dívida, os lobbystas dos bancos pressionam por deflação fiscal: excedentes orçamentais ao invés de défices com a criação de frentes de trabalho. O efeito é mais uma vez reduzir a procura de mercado do sector privado, contraindo mercados e emprego. Os governos caem mais profundamente em aflições e dizem-lhes então para liquidar ao desbarato terras e recursos naturais, empresas públicas e outros activos. Isto cria um mercado lucrativo para empréstimos bancários financiarem privatizações a crédito. O que explica porque os lobbystas financeiros apoiam os direitos dos novos compradores a elevarem os preços que cobram por necessidades básicas, criando uma frente unida para endossar a extracção de renda. O efeito é enriquecer o sector financeiro possuído pelos 1% de maneiras que endividam e privatizam a economia como um todo – indivíduos, negócios e o próprio governo.

Esta política foi denunciada como destrutiva no fim dos anos 1920 e princípio da década de 1930 quando John Maynard Keynes, Harold Moulton e alguns outros contestaram as afirmações de Jacques Rueff e Bertil Ohlin de que dívidas de qualquer magnitude podiam ser pagas se os governo impusessem austeridade e sofrimento suficientemente profundos. Esta é a doutrina adoptada desde a década de 1960 pelo Fundo Monetário Internacional para ser imposta sobre devedores do Terceiro Mundo e pelos neoliberais europeus que defendem credores impondo austeridade à Irlanda, Grécia, Espanha e Portugal.

Tal mitologia pró austeridade destina-se a desviar o público a fim de que não pergunte porque em tempo de paz os governos não podem simplesmente imprimir o dinheiro de que precisam. Dada a opção de imprimir dinheiro ao invés de tributar, por que tantos políticos só criam novos gastos com o objectivo de travar guerra e destruir propriedade, não para construir ou reparar pontos, estradas e outras infraestruturas públicas? Por que deveriam os governos tributar empregados para futuros pagamentos de aposentações, mas não a Wall Street por comissões e seguros financeiros a fim de construir um fundo para pagar por futuras crises de empréstimos excessivos dos bancos? A propósito, por que o Governo dos EUA não imprime o dinheiro para pagar a Segurança Social e cuidados médicos, da mesma forma como criou nova dívida no montante de US$13 milhões de milhões (trillion) após o salvamento bancário de 2008? (Voltarei a esta questão mais abaixo).

A resposta a estas questões tem pouco a ver com mercados, ou com teoria monetária e fiscal. Os banqueiros afirmam que se têm de pagar mais comissões de utilizador para pré-financiar futuras reclamações por maus empréstimos e seguros de depósito para poupar o Tesouro ou os contribuintes de serem cravados pela conta, terão de cobrar mais aos clientes – apesar dos seus presentes historiais de lucros, que parecem agarrar tudo quanto podem. Mas eles apoiam um duplo padrão quando se trata de tributar o trabalho.

A comutação do fardo fiscal para o trabalho e a indústria é conseguida mais facilmente através do corte nas despesas públicas para os 99%. Aqui está a raiz do confronto de Dezembro de 2012 sobre as políticas anti-défice propostas pela comissão Bowles-Simpson de cortes orçamentais que o presidente Obama nomeou em 2010. Derramando lágrimas de crocodilo sobre o fracasso do governo em equilibrar o orçamento, os bancos insistem em que os 15,3% de hoje de retenção salarial do FICA (Federal Insurance Contributions Act) seja elevado – como se isto não elevasse o custo de vida e não drenasse a economia do consumidor de poder de compra. Ao patronato e sua força de trabalho dizem para poupar antecipadamente para a Segurança Social ou outros programas públicos. Isto é um imposto sobre rendimento disfarçado sobre os 99% da base, cujas receitas são utilizadas para reduzir o défice orçamental de modo a que possam ser cortados impostos sobre as finanças e os 1%. Para parafrasear um dito de Leon Helmley, de que "Só o povo miúdo paga impostos", a palavra de ordem pós 2008 é de que só os 99% têm de sofrer perdas, não os 1% quando a deflação da dívida afunda os preços do imobiliário e do mercado de acções para inaugurar uma economia de Situação Líquida Negativa (Negative Equity) enquanto as taxas de desemprego levantam voo.

Não há mais necessidade de poupar antecipadamente para a Segurança Social do que há para poupar antecipadamente para pagar uma guerra. Vender títulos do Tesouro para pagar pensões tem efeito monetário e fiscal idêntico de vender títulos recém impressos. Trata-se de uma farsa – para comutar o fardo fiscal para cima do trabalho e da indústria. Os governos precisam proporcionar à economia dinheiro e crédito para expandir mercados e emprego. Eles fazem isso incidindo em défices orçamentais e isso pode ser feito pela criação da sua própria moeda. É a isto que os bancos se opõem, acusando-os de levar à hiper-inflação ao invés de ajudar as economias a crescerem.

A sua motivação para esta acusação errada é em causa própria e a sua lógica é enganadora. Banqueiros sempre combateram a fim de impedir governos de criarem a sua própria moeda – pelo menos em condições normais de paz. Durante muitos séculos, títulos governamentais foram o maior e mais seguro investimento para as elites financeiras que possuíam a maior parte das poupanças. Banqueiros de investimento e correctores monopolizaram as finanças públicas, com comissões substanciais de subscrição. O mercado para acções e títulos corporativos era abundante em fraudes, dominado por iniciados (insiders) ao serviço das ferrovias e grandes trusts organizados pela Wall Street e empreendimentos de canais organizados por correctores franceses e britânicos.

Contudo, quando os custos de travar uma guerra internacional excediam muito o volume da poupança nacional ou a receita fiscal disponível, havia pouca alternativa para governos senão criarem a sua própria moeda. Esta necessidade óbvia aplacava a oposição habitual levantada pelos banqueiros a fim de limitar a opção monetária pública. O que mostra que governos podem fazer mais sob condições de emergência de force majeur do que sob condições normais. E a crise financeira de Setembro de 2008 proporcionou uma oportunidade para os governos estado-unidense e europeus criarem nova dívida para salvamentos bancários. Isto revelou-se ser tão caro quanto travar uma guerra. Era na verdade uma guerra financeira. Os bancos já haviam capturado as agências reguladoras para entrarem em empréstimos temerários e numa onda de fraude e corrupção nunca vista desde a década de 1920. E agora eles estão a manter economias reféns de uma ruptura na cadeia de pagamentos se não forem salvos dos seus jogos especulativos, das suas hipotecas lixo e do seu fraudulento empacotamento de empréstimos.

A primeira vitória foi neutralizar a capacidade – ou pelo menos a vontade – do Tesouro, da Reserva Federal e do Controlador da Moeda(Comptroller of the Currency) de regular o sector financeiro. A Goldman Sachs, o Citicorp e seus companheiros gigantes da Wall Street mantinham poder de veto na nomeação de administradores chave destas agências. Eles utilizaram esta cabeça de ponte para eliminar candidatos que pudessem não favorecer os seus interesses, preferindo desreguladores ideológicos do tipo de Alan Greenspan e Tim Geithner. Como disse satiricamente John Kenneth Galbraith, uma pré condição para obter um posto num banco central é visão em túnel quando chega a entender que governos podem criar o seu crédito tão prontamente quanto os bancos o fazem. O que é necessário sã lealdades políticas para deitarem-se na cama com os bancos.

Na ruína financeira pós 2008 bastou apenas uma série de toques no teclado do computador para o governo dos EUA criar US$13 milhões de milhões de dívida a fim de salvar bancos de sofrerem perdas com os seus empréstimos imobiliários imprudentes (os quais modelos de computadores pretendiam que tornariam os bancos tão ricos que poderiam pagar aos seus administradores enormes salários, bónus e opções de acções), apostas em seguros que resultaram más (subvalorizando o risco para ganhar negócios a fim de pagar aos seus administradores enormes salários e bónus), jogos de arbitragem e fraude absoluta (dar a ilusão de rendimentos que justificassem enormes salários, bónus e opções de acções). Os US$800 mil milhões do Troubled Asset Relief Program (TARP) e os US$2 milhões de milhões dos swaps "caixa por lixo" ("cash for trash") do Federal Reserve permitiram aos bancos continuar a sua remuneração de executivos e possuidores de títulos sem um soluço – enquanto os rendimentos e a riqueza afundavam para os 99% restantes dos americanos.

Uma nova expressão, Capitalismo de Casino, foi cunhada para descrever a transformação do capitalismo financeiro que estava na era da desregulamentação pós 1980 que abriu as portas a bancos para fazerem o que governos até agora faziam em tempo de guerra: criar moeda e nova dívida pública simplesmente "imprimindo-o" – neste caso, electronicamente nos seus teclados de computador.

Levar as agências de financiamento hipotecário Fannie Mae e Freddie Mac, insolventes, para o balanço público por US$5,2 milhões de milhões representou mais de um terço do salvamento de US$13 milhões de milhões. Isto salvou os possuidores dos seus títulos de terem de sofrer perdas com as avaliações fraudulentas das hipotecas lixo com as quais o Countrywide, Bank of America, Citibank e outros bancos "demasiado grandes para falir" as haviam entupido. Este enorme aumento de dívida foi feito sem elevar impostos. De facto, a administração Bush cortou impostos, efectuando os maiores cortes para os mais altos rendimentos e escalões de riqueza que foram os seus grandes contribuidores de campanha [eleitoral]. Privilégios fiscais especiais foram dados a bancos de modo a que eles pudessem "ganhar o seu caminho para sair da dívida" (e, na verdade, da situação líquida negativa). [1] O Federal Reserve deu uma linha gratuita de crédito (Quantitative Easing) ao sistema bancário a apenas 0,25% de juro anual em 2011 – ou seja, um quarto de um ponto percentual, sem perguntar questões acerca da qualidade das hipotecas lixo e outros títulos penhorados como colateral ao seu valor facial pleno, o qual estava muito acima do preço de mercado.

Esta criação de uma dívida de US$13 milhões de milhões (trillion) para salvar bancos a fim de que não sofressem perdas não foi acusada de ameaçar a estabilidade económica. Ela permitiu [aos banqueiros] continuar a pagar salários e bónus exorbitantes, bem como dividendos a accionistas e pagar também contrapartes nas apostas de arbitragem do casino capitalista. Estes pagamentos ajudaram os 1% a receberem uns confirmados 93% dos ganhos em rendimento desde 2008. O salvamento portanto polarizou a economia, dando ao sector financeiro mais poder sobre o trabalho e os consumidores, sobre a indústria e o governo do que até então desde a Era Dourada do século XIX.

Tudo isto torna a guerra financeira de hoje muito semelhante ao período pós I Guerra Mundial e a incontáveis guerras anteriores. O efeito é empobrecer os perdedores, apropriar activos até então públicos em benefício dos vitoriosos e impor serviço de dívida e impostos pela tributação. "As crises financeiras têm sido tão devastadoras economicamente quanto uma guerra mundial e podem ser ainda um fardo para os nossos netos", observou recentemente Andrew Haldane, responsável do Banco da Inglaterra. "Em termos de perda de rendimento e produção, isto é tão mau quanto uma guerra mundial", disse ele. A ascensão da dívida governamental estimulou apelo à austeridade – sobre a parte daqueles que não receberam a dádiva. "Seria espantoso se o povo não estivesse a formular grandes questões acerca de onde é que as finanças deram para o torto" [2] .

Mas enquanto o sector financeiro estiver a vencer a sua guerra contra a economia como um todo, ele prefere que as pessoas acreditem que Não Há Alternativa. Tendo capturado a teoria económica dominante (mainstream) bem como a política governamental, as finanças procuram dissuadir estudantes, eleitores e os media de perguntarem se o sistema financeiro realmente precisa ser organizado do modo como é. Uma vez que uma tal linha de questionamento seja empreendida, o povo pode perceber que os sistemas bancário, de pensões, de Segurança Social e de financiamento do défice público não têm de ser organizados do modo como são agora. Há melhores alternativas à estrada actual para a austeridade e a servidão da dívida.

A continuar.Notas
[1] Tais benefícios não foram concedidos aos proprietários de casas cujo valor imobiliário caiu em situação líquida negativa. Para os poucos que receberam amortizações parciais (write-downs) de dívida para o valor corrente de mercado, o crédito foi tratado como rendimento normal e tributado!
[2] Philip Aldrick, " Loss of income caused by banks as bad as a 'world war' , afirma BoE's Andrew Haldane," The Telegraph, December 3, 2012. O sr. Haldane é o director executivo do banco para a estabilidade financeira.

[*] O livro The Bubble and Beyond resume as teorias económicas de Michael Hudson. O seu livro mais recente é Finance Capitalism and Its Discontents . Ele contribuiu para Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion , publicado pela AK Press. mh@michael-hudson.com

O original encontra-se em http://www.counterpunch.org/2012/12/28/americas-deceptive-2012-fiscal-cliff/ . Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .



O enganoso abismo fiscal dos EUA (2)
A guerra financeira contra a economia como um todo
por Michael Hudson [*]

A guerra económica de hoje não é da espécie daquela travada um século atrás entre o trabalho e os seus patrões industriais. As finanças movimentaram-se para capturar a economia como um todo, a indústria e a mineração, a infraestrutura pública (via privatizações) e agora até mesmo o sistema educacional. (Em 2012, a dívida de empréstimos a estudantes nos EUA excedeu a dívida de cartões de crédito em mais de US$1 milhão de milhões.) As armas nesta guerra financeira já não são forças militares. A táctica é sobrecarregar economias (governos, empresas e famílias) com dívida, sifonar o seu rendimento como serviço de dívida e então arrestar quando aos devedores faltam meios para pagá-la. Endividar governos dá aos credores uma alavanca para fisgar terra, infraestrutura pública e outras propriedades no domínio público. Endividar empresas permite aos credores apossarem-se de poupanças para pensões de empregados. E endividar o trabalho significa que já não é mais necessário contratar fura-greves para atacar organizadores sindicais e grevistas.

Os trabalhadores tornaram-se tão profundamente endividados com as suas hipotecas habitacionais, cartões de crédito e outras dívidas bancárias que receiam a greve ou mesmo queixarem-se acerca das condições de trabalho. Perder trabalho significa falhar pagamentos nas suas contas mensais, permitindo aos bancos elevar taxas de juro a níveis que costumavam ser considerados usurários. Assim a servidão da dívida (debt peonage) e o desemprego assomam no topo da escravidão salarial que foi o foco principal da guerra de classe um século atrás. E para coroar, lobbyistas dos cartões de crédito bancários reescreveram as leis da bancarrota a fim de restringir direitos dos devedores e os árbitros nomeados para decidir disputas levantadas por devedores e consumidores são sujeitos a veto por parte dos bancos e negócios que são os principais responsáveis por infligir danos.

O objectivo da guerra financeira não é simplesmente adquirir terra, recursos naturais e rendas de infraestruturas chave como na guerra militar; é, sim, centralizar o controle do credor sobre a sociedade. Em contraste com a promessa de reforma democrática de um século atrás para proteger uma classe de média, estamos a testemunhar uma regressão para um mundo de privilégio especial no qual alguém deve herdar riqueza a fim de evitar dívida e trabalho dependente.

A oligarquia financeira emergente procura comutar impostos dos bancos e seus principais clientes (imobiliário, recursos naturais em monopólios) para o trabalho. Dada a necessidade de ganhar o consentimento do eleitor, este objectivo é melhor alcançado pela redução de impostos para todos. O caminho mais fácil para isto é contrair despesa governamental, a começar pela Segurança Social, Medicare e Medicaid. Mas estes são os programas que desfrutam o mais forte apoio eleitoral. Este facto inspirou aquilo que pode ser chamado a Grande Mentira da nossa época: a pretensão de que governos só podem criar moeda para pagar o sector financeiro e que os beneficiários de programas sociais deveriam ser totalmente responsáveis pelo pagamento da Segurança Social, Medicare e Medicaid, não os ricos. A Grande Mentira é utilizada para reverter o conceito de tributação progressiva, transformando o sistema fiscal numa trama do sector financeiro para impor tributos à economia como um todo.

Lobbyistas financeiros descobriram rapidamente que o truque mais fácil para comutar o custo de programas sociais para o trabalho é ocultar novos impostos como taxas de utilização (user fees), utilizando as receitas para cortar impostos dos 1% da elite. Esta prestidigitação fiscal era o objectivo da Comissão Greenspan de 1983. Ela confundia o povo levando-o a pensar que orçamentos governamentais são como orçamentos familiares, ocultando o facto de que governos podem financiar seus gastos pela criação da sua própria moeda. Eles não têm de tomar emprestado, ou mesmo tributar (pelo menos, não tributar principalmente os 99%).

A guinada fiscal Greenspan jogou no facto de que a maior parte das pessoas vêem a necessidade de poupar para a sua própria aposentação. O engano cuidadosamente montado e bem subsidiado em acção é que a Segurança Social exige um pré financiamento semelhante – elevando a retenção salarial. O truque é convencer assalariados que é razoável tributá-los mais para pagar gastos sociais do governo, mas também para pedirem ao sector bancário para pagar uma taxa de utilização semelhante a fim de poupar antecipadamente para a próxima vez em que ele próprio precisar de salvamentos para cobrir as suas perdas. Também assimétrico é o facto de que ninguém sugere que o governo estabeleça um fundo para pagar guerras futuras, de modo a que aventuras futuras tais como o Iraque ou Afeganistão não "incorram num défice" que sobrecarregue o orçamento. Assim, o primeiro engano é tratar apenas a Segurança Social e os cuidados médicos como taxas de utilização. O segundo é agravar o assunto ao insistir em que tais taxas serão pagar com muita antecipação, pela pré poupança.

Não há nenhuma necessidade inerente de destacar qualquer área particular da despesa pública como causadora de um défice orçamental se este não for pré financiado. Isso é uma paródia de política de tributação progressiva apenas para obrigar trabalhadores cujos salários são inferiores a (no presente) US$105 mil a pagarem esta retenção salarial ao FICA (Federal Insurance Contributions Act), isentando ganhos mais elevados, ganhos de capital, rendimento rentista e lucros. A raison d'être para tributar os 99% para Segurança Social e Medicare é simplesmente evitar tributar a riqueza, pelo ataque ao rendimento dos baixos salários com uma taxa muito mais alta do que aquela dos ricos. Esta não é a forma como foi criada o imposto original sobre o rendimento nos EUA no seu início em 1913. Durante os seus primeiros anos apenas os mais ricos 1% da população tinham um retorno a registar. Havia poucos alçapões e os ganhos de capital eram tributados à mesma taxa do rendimento ganho.


O programa governamental de seguros do litoral, por exemplo, recentemente incorreu num passivo de US$1 milhão de milhões (trillion) para reconstruir as praias e lares privados devastados pelo Furacão Sandy. Por que este seguro subsidiado a baixa taxa comercial para a minoria rica que vive neste cenário de propriedade de alto risco ser tratado como despesa normal mas não a Segurança Social? Por que poupar antecipadamente através de um imposto salarial especial para pagar por estes programas que beneficia a população geral, mas não impor uma "taxa de utilização" semelhante para tributar por seguro de inundação para casas frente à praia ou para guerras? E já que falamos nisso, porque não poupar antecipadamente outros US$13 milhões de milhões para pagar o próximo salvamento da Wall Street quando a deflação da dívida provocar que outra crise drene o orçamento?

Mas sobre quem deveríamos nós cobrar estes impostos? Impor taxas de utilização para a reconstrução do litoral exigiria um imposto que caísse principalmente sobre os proprietários ricos de tais propriedades. O seu papel dominante ao financiar as campanhas eleitorais dos congressistas e senadores que redigem o código fiscal sugere a razão porque eles são capazes de evitar o pagamento antecipado do custo de reconstruir suas propriedades frente ao mar. Tal tributação é só para assalariados sobre rendimento de aposentações, não para os 1% sobre os seus próprios lares de férias e aposentação.

Com a não elevação dos impostos sobre a riqueza ou a utilização do banco central para monetizar despesa sobre algo que não seja o salvamento de bancos e a subsidiação do sector financeiro, o governo segue uma política pró credor. O favoritismo fiscal para a riqueza aprofunda o défice orçamental, forçando governos a tomarem mais empréstimos. Pagar juros sobre esta dívida desvia a receita de ser gasta em bens e serviços. Esta austeridade fiscal contrai mercados, reduzindo a arrecadação para a beira do incumprimento. Isto permite que possuidores de títulos tratem o governo do mesmo modo como os bancos tratam uma família em bancarrota, forçando o vendedor a liquidar activos – neste caso o domínio público se fossem as pratas da família, tal como o primeiro-ministro britânico Harold MacMillan caracterizou as liquidações privatizadoras de Margaret Thatcher.

Num viés de duplo pensamento orwelliano, estas privatizações são feitas em nome de mercados livres, apesar de ser imposta pelas instituições financeiras globais cujos administradores não são democraticamente eleitos. O Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Central Europeu (BCE) e a burocracia da UE trata governos como bancos tratam proprietários de casas incapazes de pagar sua hipoteca: pelo arresto. À Grécia, por exemplo, disseram-lhe para começar a liquidar os principais sítios turísticos, portos, ilhas, direitos de exploração de gás no offshore, sistemas de águas e esgotos, estradas e outras propriedades.

Governos soberanos são, em princípio, livres de tal pressão. É isso que os faz soberanos. Eles não são obrigados a regularizar dívidas públicas e défices orçamentais através da liquidação de activos. Eles não precisam tomar emprestado mais divisa interna; podem criá-la. Este auto-financiamento mantém o património nacional em mãos públicas ao invés de entregá-lo a compradores privados, ou ter de assumir empréstimos junto a banco e possuidores de títulos.

31/Dezembro/2012

A continuar.

Esta é o segundo artigo de uma série. A primeira parte encontra-s em http://resistir.info/crise/hudson_28dez12.html

[*] O livro The Bubble and Beyond resume as teorias económicas de Michael Hudson. O seu livro mais recente é Finance Capitalism and Its Discontents . O autor contribuiu para Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion . mh@michael-hudson.com

O original encontra-se em www.counterpunch.org/2012/12/31/the-financial-war-against-the-economy-at-large/. Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .




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