Bem Paraná
Documento resgata movimentos e mudanças do final dos anos 60
13/09/12 às 00:22 Luiz Carlos Merten / Agência Estado
Marcelo Machado terminava de ler “Brasil Tropical”, de Caetano Veloso, quando, por uma estranha coincidência, lhe chegou o projeto de um filme sobre o movimento político-cultural que agitou o Brasil do final dos anos 1960. O documentário havia seguido uma trajetória tortuosa. Uma dupla de jovens e entusiasmados norte-americanos - Vaughn Glover e Maurice James - havia procurado Fernando Meirelles em busca de parceria. Foi na época do lançamento de “O Jardineiro Fiel”, em 2005. Meirelles estava ocupado com outros projetaos e os encaminhou para Machado.
Ele se interessou, até porque o livro lhe dera ‘ideias’, mas terminou se distanciando da dupla porque discordava do foco deles e exigia mudar o roteiro. “Eles tomavam Waly Salomão e Nara Leão como referências vivas”, cita o diretor para expor algumas das divergências. “Tropicália” estreia na sexta, em cinco capitais - São Paulo, Rio, Salvador, Belo Horizonte e Porto Alegre. Para um documentário, será um lançamento grande - cerca de 50 cópias, a maioria das quais (40) em digital. Glover e James mantêm o crédito de autores da ideia original, mas o projeto é de Marcelo Machado, que se ligou à produtora Bossa Nova.
É um pouco reducionista definir “Tropicália” como ‘documentário musical’, embora ele o seja, pela riqueza de documentos de época que Machado conseguiu reunir. Você não precisa ser fã de carteirinha do via de regra polêmico Caetano Veloso para ficar siderando, vendo-o cantar Asa Branca. As imagens do enterro do estudante André Luiz, estopim para manifestações contra a ditadura militar que culminaram na passeata dos 100 mil, é outro momento forte, emocionante. “Tropicália” é um documentário carregado de emoção, mas não perde o foco de, abordando o tropicalismo, traçar um retrato do País no biênio 1967/68.
Em 1969, a caminho de Londres - do exílio -, Caetano deu uma entrevista à TV portuguesa. Já, naquele momento, ele considerava o tropicalismo extinto. “Isso foi muito importante para mim”, avalia Machado. “O tropicalismo é muito amplo, tem muitas figuras imensas. Corria o risco de me perder nessa abordagem. Já vinha trabalhando com música, e músicos. Tinha meus dogmas. Andava insatisfeito com tantos documentários baseados em depoimentos. Preferi seguir outra via, a da documentação.”
Machado recorreu a dois pesquisadores, Eloá Chouzal e Antônio Venâncio. Com a ajuda deles, estabeleceu uma linha de tempo, baseado no ano - e pouco - que durou o tropicalismo. Imagens e sons foram negociados e Machado armou uma primeira montagem de cinco horas, reduzida a três. Só então, ele foi filmar os depoimentos, muito precisos e pontuais, com Caetano, Gilberto Gil, Tom Zé, Rita Lee, etc. A nova montagem chegou a quatro horas, finalmente reduzida para os 86 minutos com que o filme chega às salas.
O ponto de partida é o Festival de Música Brasileira da Record, em 1967, que mereceu um recente documentário de Renato Terra e Ricardo Calil, “Uma Noite em 67”. Escaldado por projetos que esbarravam na delicada questão dos direitos autorais, Machado pediu à Bossa Nova que colasse um advogado ao projeto, desde as origens. Cada minuto que aparece na tela foi negociado e adquirido - pouquíssima coisa foi doada e Machado não conseguiu coisas que desejava, ardentemente, como a cena de José Agripino de Paula em “A Mulher de Todos”, de Rogério Sganzerla.
Embora entenda os motivos do produtor Antônio Galante - “Ele me disse que, na época em que fez o filme, não havia leis de patrocínio e ele havia colocado cada centavo do próprio bolso” -, Machado lamenta não ter podido dispor das imagens. “José Agripino foi um dos teóricos do movimento e aquelas imagens teriam somado muito ao filme.” O grande mérito de “Tropicália” - a par do ritmo e da emoção - é contextualizar o tropicalismo como manifestação estética e política, como reação à repressão dos militares. Ele tem recebido críticas pelo que alguns consideram ser o caráter ‘chapa branca’ do filme. Polêmicas como a de Caetano e Roberto Schwarcz expuseram que, ao abraçar o pop, o tropicalismo levou à massificação da arte e à mediocrização contemporânea. Machado ressalta que queria fazer uma celebração - “Como falar em mediocrização com aquela arte, e aqueles artistas?”. Ele diz que não fugiu ao debate. “Está lá a discussão sobre o papel do empresário Guilherme Araújo na capitalização do movimento.”
Por isso mesmo, Marcelo Machado gostaria de ter usado sua imagem - retirada do filme “A Mulher de Todos” - em “Tropicália”, mesmo consciente de que outro filme de Sganzerla, “O Bandido da Luz Vermelha”, se integre mais nos preceitos do movimento. No cinema e na música, em todas as suas manifestações artísticas, o que o tropicalismo fez foi antecipar a discussão contemporânea sobre a mistura. Com ela veio a questão da identidade. Panis Circensis, Terra Brasilis - tudo passa pela “Tropicália”.
Serviço
TROPICÁLIA
Direção: Marcelo Machado.
Gênero: Documentário (Brasil/2012, 82 min.). Classificação: Livre.
Debate sobre identidade também atraiu cineastas
Embora tenha durado apenas ‘um ano e pouco’, o tropicalismo foi suficientemente forte para se manter até hoje como referência cultural - e de vanguarda - no imaginário dos brasileiros. Por isso mesmo, apesar da utilização da linha de tempo como fio condutor de “Tropicália”, o diretor Marcelo Machado nega o possível caráter de exumação do seu filme “Como exumar o que permanece vivo?” E ele exemplifica - “Minha banda preferida era os Mutantes, que agora é a favorita da minha filha.”
Passaram-se 43 anos desde que Caetano Veloso - em 1969 - decretou o óbito do tropicalismo. A partir daí, emprega-se o pretérito passado para focar o movimento - Ninho Moraes e Francisco César Filho mudam o conceito ao chamar de “Futuro do Pretérito” o filme em que polemizam sobre o assunto, ao levantar as questões da massificação da arte e da mediocrização contemporânea. O tropicalismo foi um movimento cultural que surgiu no Brasil sob a influência das correntes artísticas de vanguarda e do pop nacional e estrangeiro, como o pop-rock e o concretismo. Misturou manifestações e tendências, assimilou a guitarra elétrica ao som de raiz. Tinha, como se diz, objetivos comportamentais que encontraram eco em boa parte da sociedade, sob o regime militar, no fim da década de 1960.
Sempre que se fala em tropicalismo, a associação imediata é com a música, e principalmente com artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, Os Mutantes e Tom Zé. “Tropicália”, o filme, perpassa essa trajetória, mas pode-se ampliar um pouco o registro para abordar o tropicalismo no cinema brasileiro. Há um conjunto de filmes que, bebendo na fonte das ideias que se cristalizaram no movimento, terminaram por levá-lo para as telas Muitos desses filmes, senão todos, remetem ao Modernismo de 1922. Um ou outro são em preto e branco, mas a maioria não é apenas em cores. São cores especiais, em alguns casos o próprio verde-amarelo da bandeira nacional.
Haveria polêmica, certamente, na indagação se “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, é tropicalista? O filme talvez não fosse, mas Glauber era (tropicalista)? Os filmes marcos são - “Brasil Ano 2000”, de Walter Lima Jr.; “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de Andrade; “Os Herdeiros”, de Cacá Diegues; “Meteorango Kid”, de André Luiz Oliveira; “Hitler Terceiro Mundo”, de José Agrippino de Paula. O dublê de escritor e cineasta não foi um tropicalista ao pé da letra (como Glauber), mas foi um protropicalista que exerceu profunda influência sobre o movimento.
Documento resgata movimentos e mudanças do final dos anos 60
13/09/12 às 00:22 Luiz Carlos Merten / Agência Estado
Ele se interessou, até porque o livro lhe dera ‘ideias’, mas terminou se distanciando da dupla porque discordava do foco deles e exigia mudar o roteiro. “Eles tomavam Waly Salomão e Nara Leão como referências vivas”, cita o diretor para expor algumas das divergências. “Tropicália” estreia na sexta, em cinco capitais - São Paulo, Rio, Salvador, Belo Horizonte e Porto Alegre. Para um documentário, será um lançamento grande - cerca de 50 cópias, a maioria das quais (40) em digital. Glover e James mantêm o crédito de autores da ideia original, mas o projeto é de Marcelo Machado, que se ligou à produtora Bossa Nova.
É um pouco reducionista definir “Tropicália” como ‘documentário musical’, embora ele o seja, pela riqueza de documentos de época que Machado conseguiu reunir. Você não precisa ser fã de carteirinha do via de regra polêmico Caetano Veloso para ficar siderando, vendo-o cantar Asa Branca. As imagens do enterro do estudante André Luiz, estopim para manifestações contra a ditadura militar que culminaram na passeata dos 100 mil, é outro momento forte, emocionante. “Tropicália” é um documentário carregado de emoção, mas não perde o foco de, abordando o tropicalismo, traçar um retrato do País no biênio 1967/68.
Em 1969, a caminho de Londres - do exílio -, Caetano deu uma entrevista à TV portuguesa. Já, naquele momento, ele considerava o tropicalismo extinto. “Isso foi muito importante para mim”, avalia Machado. “O tropicalismo é muito amplo, tem muitas figuras imensas. Corria o risco de me perder nessa abordagem. Já vinha trabalhando com música, e músicos. Tinha meus dogmas. Andava insatisfeito com tantos documentários baseados em depoimentos. Preferi seguir outra via, a da documentação.”
Machado recorreu a dois pesquisadores, Eloá Chouzal e Antônio Venâncio. Com a ajuda deles, estabeleceu uma linha de tempo, baseado no ano - e pouco - que durou o tropicalismo. Imagens e sons foram negociados e Machado armou uma primeira montagem de cinco horas, reduzida a três. Só então, ele foi filmar os depoimentos, muito precisos e pontuais, com Caetano, Gilberto Gil, Tom Zé, Rita Lee, etc. A nova montagem chegou a quatro horas, finalmente reduzida para os 86 minutos com que o filme chega às salas.
O ponto de partida é o Festival de Música Brasileira da Record, em 1967, que mereceu um recente documentário de Renato Terra e Ricardo Calil, “Uma Noite em 67”. Escaldado por projetos que esbarravam na delicada questão dos direitos autorais, Machado pediu à Bossa Nova que colasse um advogado ao projeto, desde as origens. Cada minuto que aparece na tela foi negociado e adquirido - pouquíssima coisa foi doada e Machado não conseguiu coisas que desejava, ardentemente, como a cena de José Agripino de Paula em “A Mulher de Todos”, de Rogério Sganzerla.
Embora entenda os motivos do produtor Antônio Galante - “Ele me disse que, na época em que fez o filme, não havia leis de patrocínio e ele havia colocado cada centavo do próprio bolso” -, Machado lamenta não ter podido dispor das imagens. “José Agripino foi um dos teóricos do movimento e aquelas imagens teriam somado muito ao filme.” O grande mérito de “Tropicália” - a par do ritmo e da emoção - é contextualizar o tropicalismo como manifestação estética e política, como reação à repressão dos militares. Ele tem recebido críticas pelo que alguns consideram ser o caráter ‘chapa branca’ do filme. Polêmicas como a de Caetano e Roberto Schwarcz expuseram que, ao abraçar o pop, o tropicalismo levou à massificação da arte e à mediocrização contemporânea. Machado ressalta que queria fazer uma celebração - “Como falar em mediocrização com aquela arte, e aqueles artistas?”. Ele diz que não fugiu ao debate. “Está lá a discussão sobre o papel do empresário Guilherme Araújo na capitalização do movimento.”
Por isso mesmo, Marcelo Machado gostaria de ter usado sua imagem - retirada do filme “A Mulher de Todos” - em “Tropicália”, mesmo consciente de que outro filme de Sganzerla, “O Bandido da Luz Vermelha”, se integre mais nos preceitos do movimento. No cinema e na música, em todas as suas manifestações artísticas, o que o tropicalismo fez foi antecipar a discussão contemporânea sobre a mistura. Com ela veio a questão da identidade. Panis Circensis, Terra Brasilis - tudo passa pela “Tropicália”.
Serviço
TROPICÁLIA
Direção: Marcelo Machado.
Gênero: Documentário (Brasil/2012, 82 min.). Classificação: Livre.
Debate sobre identidade também atraiu cineastas
Embora tenha durado apenas ‘um ano e pouco’, o tropicalismo foi suficientemente forte para se manter até hoje como referência cultural - e de vanguarda - no imaginário dos brasileiros. Por isso mesmo, apesar da utilização da linha de tempo como fio condutor de “Tropicália”, o diretor Marcelo Machado nega o possível caráter de exumação do seu filme “Como exumar o que permanece vivo?” E ele exemplifica - “Minha banda preferida era os Mutantes, que agora é a favorita da minha filha.”
Passaram-se 43 anos desde que Caetano Veloso - em 1969 - decretou o óbito do tropicalismo. A partir daí, emprega-se o pretérito passado para focar o movimento - Ninho Moraes e Francisco César Filho mudam o conceito ao chamar de “Futuro do Pretérito” o filme em que polemizam sobre o assunto, ao levantar as questões da massificação da arte e da mediocrização contemporânea. O tropicalismo foi um movimento cultural que surgiu no Brasil sob a influência das correntes artísticas de vanguarda e do pop nacional e estrangeiro, como o pop-rock e o concretismo. Misturou manifestações e tendências, assimilou a guitarra elétrica ao som de raiz. Tinha, como se diz, objetivos comportamentais que encontraram eco em boa parte da sociedade, sob o regime militar, no fim da década de 1960.
Sempre que se fala em tropicalismo, a associação imediata é com a música, e principalmente com artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, Os Mutantes e Tom Zé. “Tropicália”, o filme, perpassa essa trajetória, mas pode-se ampliar um pouco o registro para abordar o tropicalismo no cinema brasileiro. Há um conjunto de filmes que, bebendo na fonte das ideias que se cristalizaram no movimento, terminaram por levá-lo para as telas Muitos desses filmes, senão todos, remetem ao Modernismo de 1922. Um ou outro são em preto e branco, mas a maioria não é apenas em cores. São cores especiais, em alguns casos o próprio verde-amarelo da bandeira nacional.
Haveria polêmica, certamente, na indagação se “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, é tropicalista? O filme talvez não fosse, mas Glauber era (tropicalista)? Os filmes marcos são - “Brasil Ano 2000”, de Walter Lima Jr.; “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de Andrade; “Os Herdeiros”, de Cacá Diegues; “Meteorango Kid”, de André Luiz Oliveira; “Hitler Terceiro Mundo”, de José Agrippino de Paula. O dublê de escritor e cineasta não foi um tropicalista ao pé da letra (como Glauber), mas foi um protropicalista que exerceu profunda influência sobre o movimento.
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