Carta Maior


Qual é a principal voz europeia que se levanta para questionar a insana estratégia de estrangular os países devedores em nome de uma austeridade econômica contraproducente? Ninguém menos que Helmut Schmidt, agora na altura dos 92 anos: no último congresso do Partido Social Democrata alemão, há alguns meses, fez um ataque demolidor à política de Merkel, acusando-a de atrair a ira dos outros países europeus contra a Alemanha isolacionista.

J. Carlos de Assis (*)

Em fins dos anos 80 escrevi um livro, “Análise da Crise Brasileira”, cuja tese central era a impossibilidade de retomada do desenvolvimento brasileiro sem uma renegociação não convencional da dívida externa. Uma das minhas inspirações era um pequeno livro do grande líder social-democrata alemão, Helmut Schmidt, “A Great Strategy for the West” (Uma grande estratégia para o ocidente), no qual ele destacava a crise da dívida externa da América Latina como um dos três grandes desafios estratégicos para o Ocidente.

É notável que Schmidt tenha colocado a crise da dívida latino-americana em pé de igualdade com os problemas relacionados com a Guerra Fria e as relações franco-alemãs na Europa. Hoje, tudo isso é passado. Na época, porém, apenas uns poucos visionários malditos corriam o risco de sustentar que o problema da dívida externa não tinha qualquer possibilidade de solução convencional, isto é, com pagamento de principal e juros de mercado. Por algum caminho teria de haver perdão parcial. Opinião oposta era emitida não apenas lá fora, mas também aqui dentro.

É difícil encontrar uma situação de maior servilismo, de maior indignidade, de maior traição aos interesses nacionais que a apresentada pela esmagadora maioria dos economistas e políticos brasileiros que defenderam na época, abertamente, o pagamento integral da dívida externa brasileira, não importassem os custos sociais e econômicos internos. Vimos ministros como Maílson da Nóbrega entregar a bancos cheques bilionários, sem qualquer contrapartida, suspendendo a moratória, apenas para aparecer bem na foto com os credores internacionais e recaindo na moratória menos de um ano depois!

Foi graças ao governo conservador de Bush pai, e menos por pressão das autoridades econômicas brasileiras de então, que foi implementado o Plano Brady de rebate de 35% a 40% do principal da dívida externa brasileira. (Para ser justo, é preciso assinalar que o negociador especial nomeado por Collor, embaixador Jório Dauster, deu partida ainda em 1990 a um processo de renegociação não convencional, que supunha algum rebate na dívida ou nos juros.) De qualquer modo, a tese central que os progressista brasileiros defendiam prevaleceu: a dívida foi renegociada em condições não convencionais.

Agora acabamos de ver uma renegociação não convencional na Grécia, com uma redução considerável do principal da dívida pública. Contudo, a idéia central desse acordo é que não seja estendido aos demais países da periferia da área do euro. Trata-se de uma salvaguarda inútil: Portugal, Irlanda, Espanha e a própria Itália cedo ou tarde seguirão o caminho grego. Os “mercados” não lhes deixarão outra saída. E deve-se acentuar que o caminho grego sequer é o caminho da retomada do crescimento, mas apenas o caminho para aliviar parcialmente as obrigações financeiras do Estado sem dinheiro novo para investimento.

Qual é a principal voz europeia que se levanta para questionar essa estratégia insana de estrangular os países devedores em nome de uma austeridade econômica contraproducente? Ninguém menos que Helmut Schmidt, agora na altura dos 92 anos: no último congresso do Partido Social Democrata alemão, há alguns meses, fez um ataque demolidor à política de Merkel, acusando-a de atrair a ira dos outros países europeus contra a Alemanha isolacionista. O mais antigo ex-chanceler alemão ainda vivo deixou o conforto de sua aposentadoria para convocar os alemães a ajudar o resto da Europa a superar a crise e não a estrangulá-lo, como está fazendo Merkel.

Há uma particularidade nada desprezível na situação europeia, que Schmidt destacou numa entrevista anterior: seus líderes não dominam economia. Com isso, ficam nas mãos de tecnocratas que não medem as conseqüências sociais e políticas de seus conselhos. O Brasil, sob o governo Dilma, está dando a contraprova desse argumento: acaso o governo ter-se-ia engajado decididamente na política de redução de juros, essencial para o desenvolvimento do país a ritmo mais rápido, caso a Presidenta não fosse economista e pudesse ter uma idéia clara das conseqüências de sua ação ou de sua omissão? Quando se deixam as decisões de governo aos economistas da máquina, a tendência inexorável é não acontecer nada, sobretudo quando há conflitos de interesse à vista.

(*) Economista e professor de Economia Internacional da UEPB, autor, em co-autoria com o matemático Francisco Antonio Doria, do recém-lançado “O universo neoliberal em desencanto”, pela Civilização Brasileira. Este artigo sai também no site Rumos do Brasil e, às terças, no jornal carioca Monitor Mercantil.

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