CARTA CAPITAL



Projeto que leva cinema e fotografia a cidades mineiras ribeirinhas exibe o premiado Girimunho no lugarejo do Sertão onde foi gravado. Foto: Andre Fossati

A poucos metros das margens do Rio São Francisco, a tela grande é inflada em menos de 15 minutos. Diante dela, as 150 cadeiras são retiradas do caminhão e enfileiradas. Forma-se ali, ao ar livre, uma plateia. Ao escurecer, chegam a pipoca e a fila de crianças. E assim começa mais uma exibição do Festival Cinema no Rio São Francisco, que há sete anos leva a Sétima Arte para comunidades ribeirinhas ao longo do Velho Chico, nos rincões de Minas Gerais. A sessão que a reportagem acompanhou, em 28 de abril, deixou a entrada de uma pequena cidade mineira, distante 500 quilômetrosde Belo Horizonte, apinhada de gente para assistir ao filme Girimunho, um híbrido de documentário e ficção dirigido por Helvécio Marins Jr. e Clarissa Campolina.

A cidade em questão é o local onde o filme foi gravado. E os motivos que levaram os diretores a escolher São Romão, um lugarejo esquecido, é o fato de reunir um cenário e personagens que parecem ter sido roubados das histórias de Guimarães Rosa – da balsa enferrujada às ruas cobertas de poeira laranja, da fala dos moradores às casas antigas e desgastadas. Bastariam para um enredo roseano não fosse o toque de realismo fantástico de García Márquez. Um cantor que teve sua língua comida pelo câncer e uma mulher que carrega lenha e gatos no colo são algumas das figuras que ali vivem. Por lá, rezam as lendas, até Lampião teria aparecido. Hoje, porém, das 9 mil personagens potenciais da cidade, nenhuma é mais famosa do que as duas Marias.

Maria Sebastiana Martins Álvares e Maria da Conceição Gomes de Moura são o oposto do que se espera de estrelas de cinema. As duas beiram os 85 anos, viveram grande parte da vida sem sair da cidade e ainda moram em casas simples, de pau a pique. Ambas emprestaram e encenaram parte de sua história para o longa-metragem idealizado por Marins Jr. durante as viagens a bordo do navio que carrega a equipe do Cinema no Rio.

O filme é sobre o cotidiano das duas Marias. A primeira, apelidada de Bastú, ainda guarda, aos 84 anos, a agilidade e a habilidade de boa contadora de histórias. Ao receber o grupo de repórteres em sua casa, oferece café e cuida logo de retirar o papagaio engaiolado da cozinha. Sem se intimidar com as câmeras, conta um dos casos retratados no filme, a morte do marido. “Ele deu para beber. Sempre teve coleguismo de cachaça. No fim, ele foi e eu fiquei”, relata. Na trama, o espírito inquieto do marido, o ferreiro Feliciano, ainda fica rondando a casa, trabalhando e ocupando a oficina. A morte é encarada com naturalidade por Bastú, que, a certa altura do filme, ao ser interpelada pelo neto se é capaz de chorar, responde: “Eu não choro, fiz um acordo com a minha mãe de nunca mais chorar”.

Maria do Boi, a outra protagonista do filme, guarda as tradições musicais de sua comunidade. Nascida em 1929, é herdeira do batuque, canto com raízes africanas cujas letras falam sobre a vida da região. Atualmente, é uma das últimas fontes vivas dessa cultura centenária. Figura de personalidade forte no filme, Maria do Boi hoje se encontra fragilizada, após um longo período de enfermidade. Ao contrário do que aconteceu com dona Bastú, a aproximação dela com os cineastas foi tortuosa. “No primeiro encontro, ela me expulsou de casa”, lembra Helvécio Marins. Foram necessários três anos e oito visitas para que os diretores ganhassem a confiança da matriarca. Mesmo depois de aceitar participar do filme, Maria não facilitou o trabalho. “Ela não queria falar nada que fosse mentira”, conta o diretor. Mentira para Maria era qualquer fato aumentado ou inventado para dar mais vida ao roteiro.

Telinha itinerante

O Cinema no Rio nasceu em 2004, idealizado pelo cineasta Inácio Neves, que já organizava exibições de cinema ao ar livre há pelo menos uma década. Ao ver um escorregador de plástico inflável em uma festa de aniversário, Neves percebeu que poderia utilizar o mesmo material e adaptá-lo para construir uma tela de cinema portátil. Com isso, o projeto poderia ser transportado para qualquer lugar do Brasil. Hoje, mais de 200 mil pessoas assistiram aos filmes rodados por sua equipe.

Cerca de 20 pessoas, entre jornalistas, cineastas, educadores, médicos e antropólogos fazem parte da tripulação do navio de ferro azul e branco, batizado de Luminar. Outra parte da equipe faz o trajeto por terra, dirigindo o caminhão responsável por levar os equipamentos de projeção, as cadeiras e a grande tela inflável.

Um dos caminhos escolhidos foi o São Francisco, o segundo maior rio brasileiro. Descoberto em 1502, o São Francisco percorre 2,7 mil quilômetros de sua nascente, na Serra da Canastra, até sua foz, na divisa entre os estados do Sergipe e Alagoas. Ao longo de seu trajeto irriga e dá vida a muitas comunidades. Às margens de São Romão, as águas do São Francisco são barrentas, porém tranquilas. Uma antiga balsa funciona 24 horas por dia, transportando moradores e visitantes até a localidade.

Em cada cidade por onde passa, o Cinema no Rio exibe animações, documentários, longas e curtas-metragens. Como se trata de uma sessão aberta, geralmente cheia de crianças, existe o cuidado de não mostrar filmes com cenas de violência, drogas ou nudez. “Escolhemos filmes que, de alguma forma, remetam à realidade do povo ribeirinho. Seja ao imaginário ou ao dia a dia deles”, conta Inácio Neves. Na edição acompanhada pela reportagem, fizeram parte da programação, além da atração principal, Girimunho, os curtas Gaivotas, Língua das Coisas, Procura-se e -Casa de Máquinas.

O trajeto é escolhido pelo menos um mês antes de o Cinema no Rio começar. É feita uma pré-produção, na qual a equipe percorre as cidades selecionadas e grava um minidocumentário sobre o local, sempre projetado antes de cada exibição. “No passado, o São Francisco era bem vivo. Toda a comunicação Nordeste-Sudeste era feita por ele, já que não existiam estradas. Encontramos várias cidades grandes ao lado do rio, ao mesmo tempo que também descobrimos novos lugarejos”, conta Inácio Neves.

Experiência do olhar

Além da exibição dos curtas e longas-metragens para a população das cidades por onde passa o festival, a equipe do Cinema no Rio também organiza oficinas para crianças de escolas públicas da região desde2010. Aideia nasceu durante a passagem da trupe pela cidade de Cachoeira do Manteiga, a500 quilômetrosde Belo Horizonte. Com o barco ancorado na cidade, as crianças logo se aproximaram, curiosas com as câmeras de filmagem e fotografia.

A oficina começa bem cedo, às 8 da manhã, e vai até o horário do almoço. Um grupo de 25 crianças entre 10 e 14 anos reuniu-se na Escola Estadual Tancredo Neves, no sábado ensolarado, ao lado de três educadores, para, com a ajuda de 12 câmera digitais, aprender fundamentos da fotografia e registrar em imagens um pouco do cotidiano da cidade. Para a diretora da escola, Fabíola Balbino Palma, o convite veio em boa hora. “A iniciativa é fantástica, pois abre possibilidades de ensinar a leitura através da fotografia”, explica ela, que é dirigente da escola há quatro anos. Além disso, defende a educadora, é uma forma de os alunos abrirem os olhos para uma nova visão da cidade em que vivem.

Interagir com o projeto e resgatar a autoestima das crianças também são objetivos da oficina lúdica. “É uma forma de eles terem orgulho de sua cidade e de verem o local de outra maneira”, analisa Iasmin Marques, atriz e uma das educadoras da oficina.

Comentário(s)

Postagem Anterior Próxima Postagem


Livros em Oferta

Confira e surpreenda-se com os preços extremamente baixos