O POVO Online
Existe um ponto em comum entre dois conflitos contemporâneos distintos e ele está na ideia de “corpo”. Para ser mais preciso, não é uma ideia ou mesmo um conceito, não é, por exemplo, o corpo como teorizado exaustivamente pela estética da arte contemporânea, e não o é por uma falta de afinidade política, muito pelo contrário, mas, sim, porque o corpo da vez dispensa abstrações, é simplesmente a força física de ocupar um espaço no tempo – ou sua impossibilidade de atravessar paredes.
Essa pelo menos é a leitura que se depreende de dois livros lançados recentemente sobre, o primeiro, a guerra entre Israel e Palestina e, o segundo, os movimentos de ocupação de espaços públicos em países tão diferentes quanto o Egito e os Estados Unidos.
Em Um muro na Palestina (Editora Record), o jornalista francês René Backmann usa a técnica da reportagem para contar histórias de pessoas que tiveram suas vidas atravessadas por placas de concreto de 40 centímetros de espessura e aproximadamente oito metros de altura, enfileiradas uma após a outra por centenas de quilômetros, cortando a cidade de Jerusalém em duas para resguardar a segurança do povo israelense.
Nesse caso, o mesmo corpo palestino de Terry Boulatta – uma diretora de escola e militante pela paz entre árabes e judeus – que antes fazia o percurso entre sua casa e a escola onde trabalha com uma caminhada de cinco minutos, depois do muro israelense precisa rodar cerca de 15 quilômetros de carro, enfrentar engarrafamentos e passar por um posto de controle israelense até chegar, 40 minutos depois, ao seu destino, distante apenas 300 metros do ponto de partida.
Sem falar em consequências mais íntimas, como a impossibilidade do corpo de Terry dormir com o de seu marido, que pelas políticas de controle de trânsito entre os lados leste e oeste de Jerusalém é obrigado todas as noites a permanecer do lado de lá do muro, sob pena de perder privilégios caros à família em caso de desobediência.
Essa e outras histórias estão contadas no livro de Backmann, que, apesar de requerer como boa parte da bibliografia sobre o assunto um senso apurado da geografia da região (no que o leitor não é muito ajudado pelos toscos mapas em preto e branco da edição brasileira), esclarece o que está em jogo na gigantesca empreitada de Israel para segregar israelenses e palestinos, por mais que isso não impeça em muitos casos a exploração de mão-de-obra barata destes por aqueles – uma porosidade salutar ao esquema.
Ou seja, forçando um pouco a barra, trata-se – ao menos em tese, já que Backmann também contra-argumenta no livro a justificativa do muro ser apenas uma estratégia de segurança – de combater o corpo explosivo de homens-bombas, assim como os perigosamente semelhantes de professores, operários, comerciantes, com a presença inegociável do concreto.
Na rua
O segundo livro é Ocuppy (Boitempo Editorial) e traz no subtítulo seu tema: “movimentos de protesto que tomaram as ruas”. A coletânea reúne textos sobre os movimentos que fizeram de 2011 um ano inspirador para quem gosta de ver as coisas saindo do lugar. Milhões de pessoas foram às ruas, ocuparam praças e protestaram pelos mais diferentes motivos, do Oriente Médio a Wall Street, do Leste Europeu ao sul da América Latina.
No livro, autores como Slavoj %u017Di%u017Eek, Mike Davis, David Harvey, Tariq Ali e Emir Sader analisam essas ações, o que representam no cenário político atual e, em alguns casos, tentam orientar futuros desdobramentos, por mais que os textos curtos e em sua maioria já publicados na Internet não se aprofundem nessas questões.
Que agenda política unitária pode-se formular a partir de movimentos tão diferentes como as insurreições da chamada Primavera Árabe – cada uma com particularidades nacionais – e o Occupy Wall Street, em Nova York?
Afora a posição de cada autor – %u017Di%u017Eek, por exemplo, parece estar mais preocupado em traçar os limites desses movimentos, festivos em demasia para ele –, eles parecem concordar sobre uma estratégica em comum.
“Ela (a tática de ocupar) mostra como o poder coletivo de corpos no espaço público continua sendo o instrumento mais efetivo de oposição quando o acesso a todos os outros meios está bloqueado”, escreve Harvey.
“É o triunfo do princípio do cara a cara, da organização dialógica. As mídias sociais são importantes, é claro, mas não onipotentes”, nas palavras de Mike Davis.
O corpo de jovens, adultos e velhos (as ocupações são verdadeiros encontros de gerações) se impõe à repressão de ditadores e à indiferença esnobe de financistas. Algo parecido com aquela velha analogia usada contra o MST: “Você gostaria que um estranho chegasse da noite para o dia, invadisse sua casa e passasse a morar nela?” A diferença é que a farsa do espaço público como a casa alheia está sendo torcida na marra por militantes espaçosos.
Conheça os Livros Abaixo:
Ativista anda por cima do muro de segurança de Israel em Ramallah, na Palestina AFP/ ABBASMOMAN |
Existe um ponto em comum entre dois conflitos contemporâneos distintos e ele está na ideia de “corpo”. Para ser mais preciso, não é uma ideia ou mesmo um conceito, não é, por exemplo, o corpo como teorizado exaustivamente pela estética da arte contemporânea, e não o é por uma falta de afinidade política, muito pelo contrário, mas, sim, porque o corpo da vez dispensa abstrações, é simplesmente a força física de ocupar um espaço no tempo – ou sua impossibilidade de atravessar paredes.
Essa pelo menos é a leitura que se depreende de dois livros lançados recentemente sobre, o primeiro, a guerra entre Israel e Palestina e, o segundo, os movimentos de ocupação de espaços públicos em países tão diferentes quanto o Egito e os Estados Unidos.
Em Um muro na Palestina (Editora Record), o jornalista francês René Backmann usa a técnica da reportagem para contar histórias de pessoas que tiveram suas vidas atravessadas por placas de concreto de 40 centímetros de espessura e aproximadamente oito metros de altura, enfileiradas uma após a outra por centenas de quilômetros, cortando a cidade de Jerusalém em duas para resguardar a segurança do povo israelense.
Nesse caso, o mesmo corpo palestino de Terry Boulatta – uma diretora de escola e militante pela paz entre árabes e judeus – que antes fazia o percurso entre sua casa e a escola onde trabalha com uma caminhada de cinco minutos, depois do muro israelense precisa rodar cerca de 15 quilômetros de carro, enfrentar engarrafamentos e passar por um posto de controle israelense até chegar, 40 minutos depois, ao seu destino, distante apenas 300 metros do ponto de partida.
Sem falar em consequências mais íntimas, como a impossibilidade do corpo de Terry dormir com o de seu marido, que pelas políticas de controle de trânsito entre os lados leste e oeste de Jerusalém é obrigado todas as noites a permanecer do lado de lá do muro, sob pena de perder privilégios caros à família em caso de desobediência.
Essa e outras histórias estão contadas no livro de Backmann, que, apesar de requerer como boa parte da bibliografia sobre o assunto um senso apurado da geografia da região (no que o leitor não é muito ajudado pelos toscos mapas em preto e branco da edição brasileira), esclarece o que está em jogo na gigantesca empreitada de Israel para segregar israelenses e palestinos, por mais que isso não impeça em muitos casos a exploração de mão-de-obra barata destes por aqueles – uma porosidade salutar ao esquema.
Ou seja, forçando um pouco a barra, trata-se – ao menos em tese, já que Backmann também contra-argumenta no livro a justificativa do muro ser apenas uma estratégia de segurança – de combater o corpo explosivo de homens-bombas, assim como os perigosamente semelhantes de professores, operários, comerciantes, com a presença inegociável do concreto.
Na rua
O segundo livro é Ocuppy (Boitempo Editorial) e traz no subtítulo seu tema: “movimentos de protesto que tomaram as ruas”. A coletânea reúne textos sobre os movimentos que fizeram de 2011 um ano inspirador para quem gosta de ver as coisas saindo do lugar. Milhões de pessoas foram às ruas, ocuparam praças e protestaram pelos mais diferentes motivos, do Oriente Médio a Wall Street, do Leste Europeu ao sul da América Latina.
No livro, autores como Slavoj %u017Di%u017Eek, Mike Davis, David Harvey, Tariq Ali e Emir Sader analisam essas ações, o que representam no cenário político atual e, em alguns casos, tentam orientar futuros desdobramentos, por mais que os textos curtos e em sua maioria já publicados na Internet não se aprofundem nessas questões.
Que agenda política unitária pode-se formular a partir de movimentos tão diferentes como as insurreições da chamada Primavera Árabe – cada uma com particularidades nacionais – e o Occupy Wall Street, em Nova York?
Afora a posição de cada autor – %u017Di%u017Eek, por exemplo, parece estar mais preocupado em traçar os limites desses movimentos, festivos em demasia para ele –, eles parecem concordar sobre uma estratégica em comum.
“Ela (a tática de ocupar) mostra como o poder coletivo de corpos no espaço público continua sendo o instrumento mais efetivo de oposição quando o acesso a todos os outros meios está bloqueado”, escreve Harvey.
“É o triunfo do princípio do cara a cara, da organização dialógica. As mídias sociais são importantes, é claro, mas não onipotentes”, nas palavras de Mike Davis.
O corpo de jovens, adultos e velhos (as ocupações são verdadeiros encontros de gerações) se impõe à repressão de ditadores e à indiferença esnobe de financistas. Algo parecido com aquela velha analogia usada contra o MST: “Você gostaria que um estranho chegasse da noite para o dia, invadisse sua casa e passasse a morar nela?” A diferença é que a farsa do espaço público como a casa alheia está sendo torcida na marra por militantes espaçosos.
Conheça os Livros Abaixo:
OCCUPY - MOVIMENTOS DE PROTESTO QUE TOMARAM AS RUAS |
UM MURO NA PALESTINA |
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