Esquerda
A confusa destituição de um alto dirigente na China profunda, os novos sobressaltos da eurocrise e o poema de um escritor alemão são as últimas peças de um quebra-cabeças: incerteza, crise e belicismo.
Por Rafael Poch
Chongquing - Foto de in search for a new country of residence/flickr
Peças que não se encaixam de todo, daí a confusão, mas que sabemos relacionarem-se entre si. O aparente vigor alemão na crise depende da China. Os dirigentes chineses estão nervosos porque sentem o solo tremer sob os seus pés. Na Síria, arma-se o que poderia ser um “big-bang bélico”. O escritor Günter Grass, que adverte na Alemanha para o perigo de uma grande guerra, é atacado por argumentos cuja estupidez é multiplicada pela unanimidade disciplinada com que são formuladas.
China:
Que se passou em Chongquing, cidade pobre e congestionada, no interior de um município de 30 milhões de habitantes, o mais povoado do mundo? O seu líder, que desenvolvia uma nova linha “social”, invocando uma cenografia maoista, niveladora e anticorrupção, foi fulminado. Era Bo Xilai, filho de um pai-fundador da Revolução Chinesa, ex-guarda vermelho, ex-ministro do Comércio e querido das multinacionais antes de ascender à chefia do Partido Comunista em Chongquing, um Boris Yetlsin chinês?
Recordemos que Yeltsin começou como “lutador contra os privilégios da nomenklatura. Reclamando-se herdeiro da pureza leninista. Apoiou-se nas ruas, não foi fulminado a tempo e acabou conquistando o poder e dissolvendo o Estado soviético. A China não é a Rússia e além disso os dirigentes de Beijing têm muito em mente o que passou na União Soviética. Mas é facto que, às vésperas do 18º Congresso, no próximo outono, quando o partido passará o comando a uma nova geração, os dirigentes mostraram-se muito nervosos diante de Bo Xilai. Vincularam a sua mulher, Bu Kailai, com a obscura morte de um empresário britânico. Destituíram-no entre advertências contra uma nova “revolução cultural”. Que se passa na China?
Ocorre que os dirigentes sentem que caminham sobre cascas de ovos. A integração na economia global, que permitiu a prodigiosa ascensão do país, é vista como possível causa do seu afundamento. Sabem que se a economia global, da qual tanto dependem, entrar em colapso deverão tirar a gravata e vestir o uniforme. Em Beijing, esta perceção tornou-se clara há alguns anos, bem antes da falência do banco Lehman Brothers, institucionalizar, em 2008, a “crise financeira”.
As mudanças de linha política na China são surpreendentes. Aconteceu com o Grande Salto em Frente e a Revolução Cultural: inesperados, incompreensíveis. O mesmo em relação às reformas pró-mercado que se sucederam a Mao. Agora o debate não é se a China vai viver uma nova guinada, mas que profundidade ela terá.
Há uma década que o setor publico da sua burocracia, empresas estatais, partido, exército, polícia e sindicatos estão a ganhar peso às custas do setor privado que, apesar das aparências, nunca deixou de ser criatura do Estado. O debate de fundo parece ser: se o setor exportador se afundar e o belicismo despontar como solução global para uma grande crise do capitalismo, o poder deverá estar bem amarrado, para que a situação não fuja ao controle. Bem amarrado para afirmar um desenvolvimento mais endógeno, mas baseado no consumo interno – para ocupar a população e impedir sua revolta, enquanto se organiza um poder militar de dissuasão e evitar o cinturão de ferro que os Estados Unidos estabelecem há anos, estabelecendo bases, alianças e deslocamento de armas em torno da China.
Impedir que a maior classe operária do mundo se rebele, ao se ver sem trabalho, por colapso do setor exportador e explosão da bolha imobiliária, para citar dois cenários extremos, obriga a burocracia a sintonizar-se com o movimento telúrico das forças sociais. Esta viragem precisaria de um novo discurso: atuar contra a impunidade, as máfias, a corrupção crescente dos últimos vinte anos; desempoeirar parte do antigo ideário maoista – evitando descambar para seu componente mais desumano e autodestrutivo, do qual a China guarda viva memória. Era para algo assim, precisamente, que apontava Bo Xilai em Chongqing. Então, por que foi expurgado?
Seguramente, por medo dos estrelismos excessivos que podem degenerar em caudilhismos imprevisíveis. Não se deve destapar a garrafa que contém o génio yeltsinista. É preciso bloquear a aparição de líderes carismáticos capazes de apelar às ruas contra o regime. Daí a reveladora advertência do primeiro-ministro Wen Jiabao sobre a Revolução Cultural, pronunciada na véspera da defenestração de Bo Xilai.
A viragem que virá precisa de ser feita de forma ordenada, procurando a mudança mais harmónica possível – em primeiro lugar, para a própria burocracia, para os equilíbrios entre os seus diversos grupos e interesses. Sem revolução. Bo Xilai poderia ser visto como um perigoso excesso neste contexto, não pelo conteúdo, mas pela forma, não pelo que fazia mas pela forma de fazê-lo.
Naturalmente, esta é apenas uma das hipóteses de leitura do episódio de Chongqing, ainda muito confuso. Mas o dado do nervosismo dos dirigentes, que sentem o solo frágil sob seus pés, é claro como a luz do dia. A China tem muitas fichas investidas neste incerto casino mundial, está mais exposta a um grande colapso que ninguém, e treme.
Europa:
A angústia de Beijing contrasta com as necessidades de curto prazo de Berlim. Os alemães desjejuam todas as manhãs com notícias otimistas sobre o “milagre alemão”, particularmente real se comparado com a miséria dos vizinhos do sul da Europa. Um dia, fala-se no crescimento das exportações, outro no recorde do emprego, outro no magnífico índice de “confiança empresarial”, outro no aumento de vendas da Volkswagen ou da BMW.
Varrendo para debaixo do tapete os dados negativos da desmontagem parcial do “Modell Deutschland” nos últimos vinte anos (aumento da precariedade no trabalho, crescimento da desigualdade social, aumento do cinismo em relação à política e deterioração da proverbial moral do trabalho), o establishmentmantém a sua campanha otimista com vista às eleições gerais de 2013. Enquanto isso, a Europa do Sul vai ao tapete em consequência da política alemã de austeridade asfixiante e do Banco Central Europeu modelo alemão, ao serviço do setor financeiro.
O aparente e frágil “milagre” mantém-se graças às vendas a países como a China, cuja subida compensa o que os europeus meridionais, arruinados, deixam de comprar. Ou seja, mantém-se, em boa medida, sobre cascas de ovo, porque a economia chinesa está a esfriar e lança sinais de nervosismo. A diferença entre a China e a Alemanha é que enquanto a primeira pensa em prevenir possíveis sinais de queda, a segunda, no máximo, vislumbra as eleições de 2013 e espera escapar ilesa ao naufrágio do Titanic, graças ao seu bilhete de primeira classe. Todos os partidos alemães que procuram posições no governo compartilham, em linhas gerais, o mesmo programa, ao serviço da mesma oligarquia corporativa-empresarial. No Politburo do eixo Berlim-Bruxelas, nem há necessidade de expurgos, porque não há sinais inquietantes de dissidentes nas instituições.
A expectativa na Europa não é alemã, mas uma combinação do crescente mal-estar social na Grécia, Portugal, Espanha e Itália com eleições na França. Será preciso esperar pelos factos, mas, como no caso de Chongquing, o que mais importa é o contexto. A China depende da Europa e a Europa depende da China. Todos caminham sobre cascas de ovos. Uns, sabem disso; outros, ignoram e confiam no seu bilhete de primeira.
Médio Oriente:
Neste instante, o velho escritor desperta-os do seu doce sonho. O seu poema apresenta-lhes uma lista de evidências banais, sobre o perigo bélico. Critica o “suposto direito a um ataque preventivo” de Israel, que “dispõe de um crescente potencial nuclear fora de controle e inacessível a qualquer inspeção”, contra um país, Irão, que se suspeita ter fabricado uma bomba. Menciona a “hipocrisia ocidental”, diante dos factos, que “põe em perigo uma paz mundial já quebradiça”. Denuncia o seu país, a Alemanha, por entregar a Israel um novo submarino, o sexto, capaz de transportar “ogivas aniquiladoras!”. Romper o “silêncio sobre este facto”, um silêncio que diz sentir como “uma gravosa mentira”, supõe ser tachado de “anti-semita”, diz.
Günter Grass pediu “um controle internacional permanente e sem limites do potencial nuclear israelita”, a favor de “todos os seres humanos desta região dominada pela demência”. Puro senso comum. Mas que tem este poema a ver com os medos da China e a errática deriva europeia rumo à recessão?
Esta “região dominada pela demência”, citada por Grass, é o Médio Oriente, a principal zona energética do planeta. Lá, ao calor dos problemas internos do regime sírio, um adversário, o Ocidente, alenta uma guerra civil financiada por outras ditaduras árabes amigas, com o objetivo de mudança de regime. A Síria poderia ser o aperitivo da grande guerra contra o Irão evocada por Grass. O Irão é, por sua vez, o principal abastecedor energético da China e de grande parte do extremo Oriente, uma região cuja ascensão no mundo, impensável sem queimar grandes quantidades de petróleo e carvão, preocupa o desejo de hegemonia ocidental.
Uma vez mais, as peças deste quebra-cabeças são confusas no seu desenho concreto, mas não no sentido geral da situação. Uma saída bélica é o cenário clássico de uma crise geral do capitalismo. Neste caso, a guerra detonaria uma verdadeira catástrofe geral. Como diz James Petras, só um tolo pode pensar que o “ataque preventivo” de Israel contra o Irão, diante do qual os EUA e a Europa mostram tanta indulgência e cumplicidade, não degeneraria numa grande guerra na região, com muitos mortos no Irão, mísseis chovendo em resposta sobre Israel, os terminais petrolíferos do Golfo em chamas e drástico corte do abastecimento de petróleo. Ou seja, “colapso da economia mundial e brutal empobrecimento de centenas de milhões de pessoas, em toda parte”.
Tudo isso é confirmado, com distintas palavras e discursos, pela grande maioria dos israelitas e alemães que se declaram contra tal ataque nas sondagens. O diário Haaretz, de Israel, alerta sobre a insensatez do seu governo em termos não muito distintos dos de Grass, frisa o veterano Alfred Grosser, um judeu nascido em Frankfurt, em 1925, o mais conhecido estudioso francês sobre temas alemães. Até Shaul Mofaz, ex-general nascido em Teerão, que preside o Kadima, o maior partido de Israel, considera desastroso o plano de guerra do primeiro-ministro Benyamin Netanyahu, comentado com preocupação nas ruas de Telavive e Haifa.
O facto de o establishmentalemão, com a sua legião de jornalistas e políticos conformistas, pró-Israel por uma mescla de covardia (medo de ser tachados de “anti-semitas”) e responsabilidade mal-entendida, ter ridicularizado Grass com unanimidade e veemência, apenas evidencia a profunda ambiguidade do cheque em branco alemão a Israel.
A Alemanha apoia o governo de Israel, cruel e criminoso com os palestinianos, para redimir a memória dos crimes contra os judeus. Mas os cidadãos alemães devem ter algo em conta, diz o escritor Tariq Ali. “Não foram os palestinianos os responsáveis pelo assassinato de milhões de judeus durante a II Guerra Mundial. Ao contrário, converteram-se em vítimas indiretas do genocídio cometido contra os judeus, pois quem sofreu o mal praticou-o depois contra outros”.
Por que, então, nenhuma simpatia com os palestinianos? A condenação dos crimes nazis obriga a condenar também os crimes de Israel, não a fechar os olhos diante deles. Só alguém que perdeu por completo o sentido de justiça, alguém moralmente ambíguo, imaturo e profundamente perdido nos seus complexos históricos, pode conviver com este absurdo.
Em 2008, o contínuo crescimento da China foi chave para impedir um afundamento da economia global muito mais drástico. Agora, os dirigentes chineses mostram-se nervosos. Na Europa, a situação espanhola soma-se à grega na demonstração da completa ausência de perspetivas da atual euro-receita neoliberal: com apenas austeridade, as coisas ficarão piores. E na Alemanha, ataca-se o velho escritor que, como Cassandra, adverte para um perigo de guerra completamente real. Componham como queiram estas três peças, mas falam com clareza máxima da fragilidade, inconsciência e belicismo de nosso mundo.
Artigo de Rafael Poch1, publicado em blogs.lavanguardia.com, traduzido por António Martinspara Outras Palavras
1 Rafael Poch-de-Feliu (Barcelona, 1956) é correspondente do diário catalão La Vanguardiaem Berlim. Foi durante vinte anos correspondente em Moscovo e Beijing, além de correspondente na Espanha de Die Tageszeitung(Alemanha), redator da agência alemã DPA e correspondente itinerante na Europa Oriental(1983 a 1987).
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